Costumeiramente, uma vez na semana eu dou descanso ao meu Polo e vou ao meu trabalho de Mercedes-Bens. Além da óbvia economia, a saúde e o meio ambiente agradecem.
Todavia, seria bem mais confortável não fosse o fato de ter que dividir a máquina alemã com algumas dezenas de passageiros.
Já era noite, e poucos lugares disponíveis. Sentei-me ao lado de uma senhora negra, calada, parecia estar cansada e indisposta a conversar. Enquanto isso a paisagem deslizava por trás do vidro; misturando sombras, imagens e reflexos da noite fria do outono curitibano.
Se o ônibus nos conduz ao lar doce lar, o pensamento não conhece limite quando o itinerário é a imaginação. Os quinze minutos do trajeto podem durar cinco ou trinta. Depende do estado de espírito.
Às 21h45 daquela quinta-feira algo ocorreria e que jamais eu apreciaria esquecer.
Enquanto o corpo sacolejava ladeira abaixo, de repente o motorista pára o ônibus, engrena a marcha à ré e faz a curva para uma rua secundária que está à nossa direita. Todos olham para fora do ônibus em busca do motivo da mudança de itinerário. Depois de 50 metros em direção contrária, ele sinaliza à direita e abre a porta...
Só então os nervos começaram a se acalmar: o primeiro passageiro junto à porta era uma jovem deficiente visual e ela é apoiada e orientada pelo motorista e deixada para dentro do portão do seu quintal, em completa segurança. Ufa...
Deu para ouvir um suspiro geral.
- ''Pensei que fosse outra coisa'' - sussurrou um passageiro de camisa social marrom (bolso estufado denunciando o maço de cigarros), calça jeans desbotada com a barra enrolada e sapatos engraxados.
A declaração de um senhor de meia-idade, agarrado a duas sacolas amarelas, plásticas, descartáveis e cheias de produtos de supermercado não foi abafada pelo barulho do arranque do motor que retomou o velho e conhecido itinerário. Ao contrário seu eco atingiu-me.
Excetuando o artista da solidariedade que teimosamente leva o nome de motorista de ônibus, muito provavelmente todos, inclusive aquela que foi objeto da boa ação devem ter pensado de tudo. Desde assalto a blitz. Desde desorientação espacial à surto. Sabe-se lá o que mais...
A solidariedade tem duas faces: o amor e ação. O amor pode ser romântico, mas a ação pode ser apaixonante. O amor pode ser pensado, a paixão explorada. O amor surpreende, a paixão extrapola.
Nunca imaginei que uma marcha à ré pudesse reengrenar meu conceito de amor ao próximo. O mandamento de Jesus continua mais atual do que nunca. Na pós-modernidade o meu próximo está mais próximo do que eu imagino. Nem as redes sociais superam a capacidade humana de acolher o seu semelhante. Igual inclusive nas suas deficiências.
Parece que inesperado é uma das qualidades do amor. O amor não tem hora para acontecer. Não escolhe itinerário para trafegar. Ignora as portabilidades excepcionais (ou especiais para ser atual e politicamente correto). O amor quando vivido intensamente tem a capacidade de frustrar uma multidão para garantir o sossego de uma só alma.
É bem verdade que o amor lança fora o medo, segundo o apóstolo Paulo, mas também não é inverdade que ele causa arrepios em corações entrincheirados pelo comodismo.
A rigor, por que nos assustamos tanto quando saímos da rotina ou quando a circunstância nos obriga a tomar uma nova rota?
Parece muito mais cômodo e aquecido manter os braços cruzados sobre o peito. Parece! Quanto mais nos encolhemos maior a sensação do frio. Experimente relaxar. Ouse respirar fundo e liberar os nervos e músculos.
Talvez estejamos tão acostumados à rotina do ''auto-aquecimento emocional'' que, infelizmente, cause susto e desconforto quanto um, digamos, mero motorista de condução pública resolva fazer exatamente aquilo para o qual fomos criados: estender as mãos e amparar o necessitado.
A rotina dói e corrói. Ela dói tanto profundamente que nem percebemos. Corrói tão tragicamente que até a generosidade a perturba.
Curioso: o gesto altruísta do motorista anônimo não atrasou nem três minutos, mas sua repercussão ecoará muitos anos.
''Pensei que fosse outra coisa''...
Ainda bem que não eram as ''outras coisas''...
Foi apenas um motorista que provou quando a vida tem sentido mesmo andando para trás. Talvez devêssemos engrenar mais a marcha à ré em nossa vida e vivê-la mais integralmente.
Talvez devêssemos criar o Prêmio Nobel do Amor.
Talvez...
Neir Moreira é teólogo, pós-graduado em docência do Ensino Religioso pela Faculdade Batista, psicólogo formado pela UFPR e pós-graduando em Educação. www.neirmoreira.com
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