A estrela

A estrela

Fonte: Atualizado: sábado, 31 de maio de 2014 às 9:10

-Não, Jairson, você não vai sair de casa hoje, avisou o pai.

O menino queria comprar apenas um doce na mercearia poeirenta da esquina. Mas a ordem veio com autoridade.

-Hoje é sábado, você precisava descansar, insistiu o velho.

O treino da sexta-feira fora extenuante e no domingo, junto com o nascer do sol, aconteceria a grande oportunidade de reverter a pobreza da família. Jairson se apresentaria para a mais seleta platéia. Subiria pela malhas de uma peneira apertada e, sem sequer precisar ser do juvenil, chegaria ao elenco de um time internacional.

-Jogador bom precisa se concentrar, insistiu o velho.

Minutos depois da advertência, amigos chamaram Jairson para um joguinho na praça a cem metros de casa; exatamente no areal onde brilhou para tornara-se uma promessa. O menino ia virar estrela - sina que herdou com o nome. O pai de Jairson registrou no cartório um nome composto por dois dos maiores astros do tricampeonato mundial: Jairzinho e Gerson.

Era inato ao guri, driblar. Arrancava com a bola grudada nos pés. Parecia mantê-la presa por um elástico. Por mais que saçaricasse, a “gorduchinha” não fugia dos pés. Jairson jogava na pracinha abandonada e triste.  No coreto nenhuma banda tocava há décadas. Os postes se transformaram em mictório a céu aberto. Da maior parte dos bancos de cimento, restavam  ferros retorcidos. Traficantes quebraram as lâmpadas que ofereciam uma luz amarela, melancólica. Para vender a morte precisavam ficar com o manto escuro da noite. A única beleza da pracinha vinha das enormes mangueiras que se espalhavam sem saber o que acontecia debaixo de seus galhos.

Ali, no meio das mangueiras, descalço e sem camisa, Jairson começou. Ele encantava a vizinhança, não restava dúvida. Bailava como dançarino espanhol nas vezes que dominava a “pelota”. Jairson nunca vestiu camisa de time. E jamais colocou chuteira nos pés. A bola que lhe deu tanta manha era de borracha; e saltitava como um cavalo xucro. Por mais rebelde e indomável, a redonda obedecia aos comandos de Jairson. Ele parecia domar a bola por telepatia.

- Esse menino tem futuro, alardeou Antônio, morador da casa 23.

Na frente da pracinha ficava a vila pobre, que um rico alugava para os operários de uma fábrica de tecidos. Antônio sentava numa cadeira de balanço, abria uma cerveja gelada e se deliciava com as peladas. Na coxia suja, sentia-se numa arquibancada particular, espectador privilegiado.

Antônio gostava de assistir aos jogos desde o começo, quando os meninos estendiam os dedos, disputando no par ou impar os times da pelada. Em cada  jogo, o placar era elástico; pelo menos quinze gols. E o artilheiro sempre o mesmo: Jairson. Não havia dúvida, o moleque esbanjava talento; brilhava com o fulgor dos gênios. Por mais que escalassem novos times, o do Jairson ganhava.

Jairson tinha os braços magros, as pernas finas. Tinha cara de pobre. A pele era de um marrom triste, cor de fumo de charuto. Sem a bola não impressionava.

Antônio insistia pela vila.

-Essa família desperdiça um diamante.

-Vocês não podem deixar o tempo passar. Várias vezes abordou o pai do menino. -Por que você não manda o Jairson treinar numa escolinha?.

-Esse menino só precisa dos fundamentos, pontificava como especialista.

Antônio acabou convencendo o pai. Era preciso levar Jairson para visitar o “Gentilândia Sporting Club”, o time da vila. Bastava uma conversa com o técnico do infantil.

Segunda-feira, chegaram pai, filho e patrono ao treino do fim da tarde. O clube era pobre também. Mal cuidava da grama e não tinha bolas suficientes para o número de meninos. O técnico era um homem de uns trinta anos e com a cara de cinquenta. A barriga enorme, embora magro, denunciava o gosto por cerveja. Ele tinha um jeito meio afetado. Queria comportar-se como os famosos quando dão entrevista nos programas de esporte. Antônio, Jairson e o pai esperaram que o fim do treino. A iniciativa de falar foi do Antônio:

-Estamos aqui porque o filho desse senhor tem se revelado um fenômeno nas peladas do bairro. Chama-se Jairson e se for treinado, vai ser a maior revelação do futebol brasileiro.

Por algum motivo, os elogios ficaram exagerados; o pai de Jairson curvou a cabeça, como se mirasse formigas passeando. Mas, mesmo assim envergonhado, deixou o vizinho continuar a propaganda.

-Qual a idade?”, perguntou o técnico.

-Treze”, respondeu o pai, ainda cabisbaixo.

-Ele tem chuteira?.

-Não, replicou tímido.

-Façam o seguinte: tragam o menino na quarta-feira, quero ver como joga. Preciso fazer alguns testes. Eu digo o potencial dele assim que tocar na bola, finalizou. Gabava-se.

No trajeto para casa, o pai suava as palmas das mãos. Sonhava. A visita podia ser o primeiro passo para uma vida sem dívidas. Se o menino era tudo o que o Antônio alardeava, iam ficar ricos. Acompanhava o noticiário esportivo. Sabia que Agostinho, o talento há pouco revelado, artilheiro do Campeonato Brasileiro, estava vendido para o futebol europeu por alguns milhões de euros. Fechou os olhos. Viu um caminhão de mudanças estacionado na frente da casa. Imaginou a felicidade de poder sair da vila rumo a Madri, Berlim, quem sabe, Paris. Decidiu que só levariam a escrivaninha do quarto. “Afinal de contas, herdei da vovó”, pensou. Se a mulher insistisse muito, incluiria a máquina de costura. “Não quero que ela perca o hábito de fazer minhas camisas”, continuou falando sozinho. Ainda prometeu, nos sonhos acordados, que se manteria humilde. Bateu levemente na perna do Antônio, enquanto o ônibus se arrastava e jurou: -Nunca vou me esquecer de você, amigo.

No dia seguinte, o pai do craque abriu o jornal e constatou: sonhos acontecem. O craque Agostinho, até pouco morador de favela, estava na primeira página, abraçado a uma bela atriz de novela. E atrás, o escudo da Fifa mostrava Agostinho numa solenidade na Suíça. O velho não se continha de alegria. Quantas vezes imaginou visitar a Alemanha, passear ao lado do muro de Berlim e tomar cerveja em canecões gigantescos. Acelerou o coração quando se viu numa gôndola em Veneza. Sonhou e sonhou.

Na quarta-feira, o pai Jairson chegou cedo no Gentilândia. Era dia da avaliação. O técnico, a principio, não deu nenhuma atenção a eles. “Quem sabe, o cara não reconheceu a gente?” De soslaio, técnico olhou para o menino. Mas deixou esperando. Parecia ter se esquecido o que prometeu: testar o futebol do guri. Além de tudo, mostrava-se agitado, intimidando com gritos e palavrões. Dava ordens sobre os cones balizadores. Pedia concentração. Mandou a  meninada dar passes de um toque. Jairson, ávido, aguardou que alguma a ordem viesse na direção dele.

Depois de uns quinze minutos, o técnico olhou para os pés de Jairson e perguntou: -Trouxe chuteira? A cinco dias receber o salário, não havia dinheiro para comprar nada.  O pai de Jairson respondeu como quem se desculpa: -Ainda não consegui comprar.

Jairson tomou um susto quando uma camiseta voou em sua direção; tinha um número oito descosturado, pendendo pela metade. Parecia mais um zero que um oito. O técnico parecia relutar quando jogou o uniforme puído. Mas foi curto e simples: – O treino é  só com um chute na bola.

Na hora em que Jairson correu, mostrou exuberância. O menino se movia com uma ginga diferente. Meneava os quadris e bamboleava as pernas de um jeito que parecia mágica. Era um ilusionista pronto a fazer a bola desaparecer entre os pés. Mas logo Jairson inchou os pés. Desacostumado em chutar couro, parecia ter meias vermelhas. Mesmo assim, Jairson destoou. Ele era diferente dos outros meninos.

Jairson não chutava forte. Mas sabia dar efeito com a ponta dos dedos. Era um craque nas trivelas; as bolas rodopiavam como planetas. Ele parecia saber como dar mais de  uma curva no ar, desafiando a física. Em alguns momentos, ele fazia a bola pairar no ar feito um balão, vencendo a  gravidade. Em poucos minutos já era um “jogador  diferenciado”. O sol se escondeu, os mosquitos começaram a incomodar e não deu mais para reconhecer o contorno da bola na grama escura. O técnico deu o apito final, chamando os meninos até a margem do campo.

-Vamos receber o nosso novo colega com uma salva de palmas. Jairson vai treinar com a gente.

Nada mais se falou. Pairou uma reverência digna dos ídolos. Jairson fez o gramado se encher de silêncio.

Depois que dispersou a gurizada, técnico chamou o pai.

-Preciso de seis meses. Vamos levar esse menino para um teste no juvenil do Flamengo. Conheço a equipe técnica de lá. Eles me pediram para ficar de olheiro. Vivem me telefonando para saber se achei algum talento.

Os meses correram como programado. Jairson criou músculos nos braços e as pernas engrossaram. Finalmente se acostumou às chuteiras. Os cravos davam estabilidade. Com mais firmeza, melhorou. Ao bailar diante de zagueiros muito mais velhos e fortes, mostrou possuir a manha dos campeões. -O técnico não cansava de repetir: -Nasceu um novo Fenômeno.

O Gentilândia nem precisou pedir favores. Olheiros de outros times alardeavam a grandeza de Jairson, agora cortejado como um principezinho. O pai recebia ofertas, algumas tentadoras: – Vamos revelar o menino; depois de  profissionalizado, ele vai ter o maior salário pago para um infantil iniciante.  Um empresário, acostumado a negociar  jogadores pela Itália, prometia mundos e fundos.

-Esse menino está se perdendo aqui, avisou outro.

-Ele tem que ir direto para a escolinha do Real Madri, aconselhou um assessor bem vestido, que falava português com um sotaque mal disfarçado. O pai de Jairson, entretanto, não abria mão de seu compromisso com o Gentilândia.  O primeiro técnico deveria ser galardoados pelo sucesso do filho.

Naqueles seis primeiros meses, os dias passaram rápidos. Todas as noites, o pai de Jairson mirava o teto, esperando o sono chegar. Não conseguia relaxar. Delirava de felicidade.  Via-se comprando o primeiro carro. Pensava, levando a mulher até uma joalheria. Prometia a si mesmo não cobiçar carros luxuosos demais. Dizia para si mesmo que alguns jogadores eram pernósticos.  Gastavam dinheiro para se exibir.  Ele ia se contentar com um jipe preto, tração nas quatro rodas. “Só exijo ar-condicionado”, falava sozinho. E claro, ia revestir os vidros de película. Ia precisar os vidros escuros. escurecer os vidros. Com tantos pensamentos fervilhando, o sono não chegava. Quando dormia estava exausto. E acordava com um friozinho na boca do estômago. A ansiedade era grande.

Nos seis meses de preparação, Jairson continuou jogando no campinho arenoso do bairro, sempre descalço e sem camisa. Antônio manteve o camarote especial. Mas, com os treinos no Gentilândia, já dava para notar: em qualquer time em que Jairson jogar o adversário jogava com dois a mais. Na lógica da meninada, Jairson valia por dois.

Antônio também sonhava. Mesmo que o pai do prodígio nunca tivesse prometido nada, ele se convencia entre um copo e outro de cerveja: “Meu amigo não se esquecerá de mim, sei que vai lembrar. Eu enxerguei o potencial do Jairson antes de todo o mundo. Fico contente se me der de presente ao menos uma casinha aqui no bairro mesmo”.

O grande dia aconteceu na sexta feira. O técnico do Gentilândia fez Jairson o centro das atenções. Tudo se concentrou nele, afinal de contas, ele era dono das pernas que iam garantir o sucesso de todos. Foi um treino exaustivo. Naquele mesmo dia, o técnico disse em casa: -Imagina eu ser reconhecido como o primeiro treinador de um astro do futebol mundial?”. Mesmo conhecendo a história do Pelé, e sabendo que seu primeiro treinador nunca enriqueceu, tentava se convencer: “No passado não havia muito dinheiro a situação hoje é outra”.

O sábado seria o dia do descanso. No domingo, o treino foi marcado para  as oito da manhã. Às dez, um amistoso de apresentação. Dois diretores do Milan prometeram comparecer. Impressionados com os relatos que chegavam à Europa, queriam ver o novo Fenômeno. No Gentilândia, corriam boatos que os visitantes estavam dispostos a dar uma bolsa de estudos, pagando salário para o pai cuidar dos treinamentos do filho. Chegavam comentar que todo o Gentilândia seria subsidiado até que chegasse o tempo de levar o menino para a Europa.

No dito sábado, depois de ordenarem que Jairson que não saísse de casa em hipótese alguma, pai e mãe foram ao supermercado. Sentado diante da televisão, Jairson não pensava em nada. Sequer cogitava que o destino de menino pobre ia mudar na manhã seguinte.

Chegaram os dois amigos de Jairson.

-Vamos jogar uma peladinha leve? Vai ser  um  joguinho de meia hora.

Pelos cálculos, fariam  alguns gols e voltariam para casa, sem o pai notar. Do jeito que estava, só de calção, Jairson desembestou com os amigos. Foi fazer o que mais amava.

No caminho, os três notaram as mangueiras do campinho, todas cheias de mangas maduras. As mangas amarelas pendiam apetitosas. Pareciam chamar pelo nome dos meninos. Os três resolveram chupar uma, só uma. Eles não resistiam a beleza encantadora dos frutos. Três moleques se converteram em alpinistas. Escalaram o tronco em busca do cume; os galhos mais altos guardavam as mangas mais suculentas.

Lá em cima, Jairson se esticou para pegar a manga mais bonita. Um dos amigos também quis firmar-se no galho, que não suportou o peso dos dois. Ouviu-se um barulho de madeira lascando. Hirto, sem entender o que acontecia, de cabeça para baixo, com os pés apontados para uma lua pálida que ladeava o sol, Jairson se estatelou no chão.

No enterro todos se consolavam:

-Jairson quebrou a cabeça, mas vejam: os pés continuam lindos!

Soli Deo Gloria


por Ricardo Gondim

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