O que aprendi com a guerra

As mil razões para um povo atacar outro são insuficientes para justificar o pânico das crianças que não conseguem dormir com o barulho avassalador das bombas

Fonte: guiame.com.brAtualizado: segunda-feira, 14 de julho de 2014 às 14:34
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guerraUma guerra nunca é totalmente ruim. Um conflito sempre traz algum benefício. Com a II Guerra Mundial, vieram a penicilina, a propulsão a jato, o radar. As notícias das batalhas ajudam, inclusive, o conhecimento de geografia; a invasão do Iraque ensinou onde ficam as cidades de Basra e Kirkuk.

Precisei estudar a guerra para atinar os motivos que levaram Albert Camus a escrever sobre a alienação humana. Entendi a sua indignação. A banalização da vida incita o niilismo. Aprendi porque Sartre viu o próximo como náusea. Compreendi porque Ernest Hemingway e Sándor Márai se suicidaram. Hemingway percebeu nas touradas espanholas o sinistro desejo humano de transformar a morte em um espetáculo. Márai não se conformava com o que se deparou na Hungria. A batalha procura reduzir o adversário à humilhação máxima. Quando cadáveres se multiplicam, trucidar mais um vira ato comum e previsível. Horror se incorpora ao dia a dia. Quem andou por ruas lotadas de corpos destroçados e trincheiras transbordando sangue, deixa de ver a humanidade como bela. Fica mais fácil dizer que não passamos de lobos, predadores de nós mesmos.

Só com a guerra, compreendi a Guernica de Pablo Picasso. Os corpos feios, torcidos e desfigurados de sua pintura, nunca fizeram muito sentido para mim. Depois que estudei as atrocidades de Franco na guerra civil espanhola e do seu acordo com Hitler para que chovessem bombas sobre os civis, percebi: Picasso não pintava simetrias, ele traduzia o que sua alma sentia. Respirar ar fétido, numa montanha de corpos, nas ruas de Gernica eram um absurdo aos seus olhos.

Por causa da guerra, eu soube porque os hippies rejeitaram os valores ocidentais na década de sessenta. Os filhos dos sobreviventes da Grande Guerra não conseguiam tolerar os valores de seus pais. Eles eram os responsáveis. Se o cristianismo institucional não conseguia se concretizar em doçura, mas se contentava com rituais vazios, ele lhes pareceu inútil. Melhor a espiritualidade pacífica do Oriente. O iluminismo europeu, que acobertou o colonialismo e promoveu miséria, não lhes pareceu bom modelo. Os hippies tinham as duas bombas atômicas – que dizimaram Hiroshima e Nagasaki – frescas na memória. Ao perceberem a hipocrisia dos valores tradicionais da família, preferiram assumir o lema proposto por Timothy Leary: Turn on, tune in, drop out. O mundo que a geração anterior lhes entregava não oferecia esperança.

Li sobre a guerra e vi a necessidade de me manter crítico com a mídia. Nunca se manipula e mente tanto quanto na guerra. Os exércitos sabem da necessidade de manipular. A máquina de propaganda funciona a todo vapor enquanto artilharia e infantaria avançam. Só depois que a fumaça baixou, deu para entender os mecanismos que seduziram o povo alemão. O aparelho de informação se mostrou tão eficaz que o povo chegou a acreditar de verdade que os judeus eram vermes. Os responsáveis por toda desgraça alemã mereciam ser riscados da humanidade. Com tanta manipulação, uma enorme fatia de cristãos alemães se encantou com a eficiência administrativa, econômica e militar do nazismo, e se calou com as atrocidades de Hitler.

Por estudar um pouco sobre a guerra, simpatizei com Elie Wiesel. Ele viu Deus no rosto de um menino enforcado no campo de concentração. A barbárie que testemunhou não se encaixava com a mensagem de seus antepassados. Wiesel descartou a ideia de um deus onipotente contemplando, passivamente, a morte de uma criança pendurada numa forca. Hoje posso entender a decepção dos inúmeros sobreviventes dos campos de concentração que abandonaram a fé.

Conhecer a guerra me ajudou a entender a dificuldade de Jimmy Carter em Washington. Percebi o porquê dele ser maior em sua humanidade depois que passou a trabalhar como ex-presidente. A indústria bélica e os interesses econômicos nas aventuras militares são maiores do que imaginamos. As fábricas de aviões, torpedeiros, submarinos e drones são poderosas; atropelam qualquer um que se oponha a elas. Quem deseja viver o espírito da bem-aventurança - Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus - tem que sair do sistema.

Saber sobre a guerra meu levou a compreender cobeligerância como possibilidade de fazer parceria com quem se atreve a enfrentar os sistemas desumanos. É possível concordar até com Paulo Coelho que, ironicamente, agradeceu ao presidente George W. Bush na véspera de invadir o Iraque:

Agora que os tambores da guerra parecem soar de maneira irreversível, quero fazer minhas as palavras de um antigo rei europeu a um invasor: ‘Que sua manhã seja linda, que o sol brilhe nas armaduras de seus soldados, porque durante a tarde eu o derrotarei’. Obrigado por permitir a todos nós, um exército de anônimos que passeiam pelas ruas tentando parar um processo já em marcha, tomarmos conhecimento do que é a sensação de impotência, aprendermos a lidar com ela e a transformá-la. Portanto, aproveite sua manhã e o que ela ainda pode trazer de glória. Obrigado porque não nos escutastes e não nos levaste a sério. Pois saiba que nós o escutamos e não esqueceremos suas palavras. Obrigado, grande líder George W. Bush.

Sim, preciso fazer parceria até com quem discordo pontualmente em um ou outro ponto. Sem medo, confesso necessitar de parceiros no enfrentamento das máquinas da morte.

Careci saber mais sobre a guerra para intuir a grandeza de Gandhi. Quão honrado o homem que pregou a não-violência mesmo quando um império tripudiava sobre a miséria do seu povo. Martin Luther King Junior foi nobre porque não se deixou azedar pela violência que bania o negro do convívio e da riqueza dos Estados Unidos. A envergadura de Nelson Mandela só faz sentido se atinamos para o preconceito em um país adoecido pelo ódio.

A guerra me faz entender a Bíblia quando afirma: Quão formosos os pés daqueles que anunciam a paz. A fábula do lobo e do cordeiro nunca se desatualizou: se o lobo determina matar o cordeiro, não restam argumentos. Jesus é descrito nas páginas da Bíblia como o Cordeiro de Deus. Ele é príncipe da paz, exatamente, por não pactuar com a lógica do lobo. Deus se arrependeu de ter prometido a destruição de Nínive. Na cidade havia 120 mil almas que não sabiam discernir a mão esquerda da direita. Por que exterminá-los? Ele ama gente. Agora eu entendo com mais profundidade porque Deus deu o seu Filho com a missão de salvar e não de condenar. Jesus se recusou a derramar fogo sobre os samaritanos. Ele desfazia a ideia de que Deus se parece com as divindades sanguinárias.

Impérios desmoronam. Grandes potências se acabam. Nenhum exércitos garante a sobrevivência de uma ideologia. A Macedônia não subsistiu ao poder de Roma. Mais tarde, os bárbaros, considerados reles, conquistaram Roma. Daí o provérbio bíblico: a soberba precede a queda e o espírito altivo vem antes da destruição.

A guerra me fez entender a citação bíblica de que pedras clamam quando os que se dizem de Deus se calam. Só agora entendo o peso dos argumentos de Maurício Pessoa no “Estado de Minas Gerais” em 24 de março de 2003:

Particularmente, não compreendo porque é mais glorioso bombardear de projéteis uma cidade assediada do que assassinar alguém a machadadas. A guerra é aquele monstro que se sustenta do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É aquela tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, as cidades, as crianças e velhos à destruição sem piedade. É a guerra aquela calamidade composta por todas as calamidades. A guerra não é um instinto mas um invento. Os animais não a conhecem e é pura instituição humana como a ciência ou a administração. Diante dela o pacifismo está perdido e se transforma em pura beatice. Tal como os assassinatos, as guerras invariavelmente não passam de ataques de loucura. Mas, afinal, o que é a guerra? A guerra consiste em fazer o impossível para que imensos pedaços de ferro penetrem na carne viva em nome da honra e glória.

As mil razões para um povo atacar outro são insuficientes para justificar o pânico das crianças que não conseguem dormir com o barulho avassalador das bombas. A doutrina da segurança nacional não justifica a morte do idoso que não se safou dos estilhaços. O inferno de Dante não se compara ao calor do míssil que reduziu a grávida a cinzas. Não há outro caminho para a humanidade senão sonhar com a utopia de que, um dia, justiça e paz se beijarão.

Soli Deo Gloria


- Ricardo Gondim

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