Educação domiciliar Vs. abandono intelectual

Algumas pessoas, principalmente por ignorância quanto ao assunto do ensino domiciliar, têm confundido-o com abandono intelectual.

Fonte: Guiame, ANAJUREAtualizado: sexta-feira, 19 de março de 2021 às 18:28
Logotipo do Programa de Apoio à Educação Domiciliar (PAED) . (Foto: Reprodução / ANAJURE)
Logotipo do Programa de Apoio à Educação Domiciliar (PAED) . (Foto: Reprodução / ANAJURE)

Introdução

A educação domiciliar tem adquirido cada vez mais destaque nos debates do espaço público. A atual situação de pandemia, a impedir a realização de aulas presenciais, apenas fez sobressair ainda mais a necessidade de se falar sobre o tema. Todavia, na prática, algumas pessoas, principalmente por ignorância quanto ao assunto do ensino domiciliar, têm confundido-o com abandono intelectual. Nessa publicação, pretendemos esclarecer alguns equívocos sobre o tema.

O que é abandono intelectual?

O abandono intelectual encontra tipificação penal no art. 246 do Código Penal, que qualifica como crime “deixar, sem justa causa, de prover à instrução primária de filho em idade escolar”. Não obstante, a própria exegese do dispositivo auxilia-nos à compreensão.

Veja-se, inicialmente, que em nenhum momento o artigo em questão obriga os pais a matricularem seus filhos na escola. A obrigação imposta aos pais pelo dispositivo é a de “prover a instrução primária” da criança. A forma como essa instrução será provida, se em escola pública, particular, mediante professores contratados diretamente ou pelo ensino direto dos pais, não é prevista.

A intenção do legislador ao construir o tipo penal em questão é justamente impedir que pais deixem de promover a adequada instrução de seus filhos, impedindo-os de participar posteriormente, de forma efetiva, na sociedade e no mercado de trabalho em condições de igualdade com os demais.

Dois princípios do Direito Penal auxiliam-nos aqui: o da taxatividade da lei penal e o da lesividade. O primeiro prescreve que a legislação criminal sempre deve ser interpretada de forma restritiva, sem ampliar seu conceito. Logo, não se pode estender a proibição à falta de ensino para abranger a ausência de uma forma específica de ensino não mencionada no artigo. O segundo, por sua vez, exige que da prática em questão decorra dano ou lesão efetiva a algum bem jurídico, no caso, a formação da criança. Ora, não há qualquer indicativo que crianças que recebem educação domiciliar sofram qualquer tipo de dano por isso. Pelo contrário, pesquisas comparativas têm apontado que elas apresentam índices melhores de desempenho que egressos do sistema escolar tradicional. [1] [2]

Logo, não há como confundir a opção parental por uma modalidade específica de educação com o abandono intelectual previsto na legislação penal.

A família nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos

A família, elemento natural e fundamental da sociedade (art. 17, item 1 do Pacto de São José da Costa Rica) goza de proteção desta e do Estado (art. 16, item 3 da Declaração Universal de Direitos Humanos), devendo ter seus direitos respeitados e não podendo sofrer ingerências arbitrárias ou abusivas (art. 11, item 2 do Pacto de São José da Costa Rica).

Um dentre esses direitos, consagrado no art. 12, item 4 da Convenção Americana de Direitos Humanos e no art. 18, item 3 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, consiste no direito dos pais a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral em conformidade com suas próprias convicções. Assim, porque crianças não nascem em Estados ou em escolas, mas em famílias, cabe prioritariamente a estas o dever e o direito de guiar a transmissão dos valores morais e espirituais conforme melhor lhes parecer, desde que respeitem a dignidade das crianças e dos adolescentes, devendo tal educação ser respeitada pela sociedade e pelo Estado [3].

Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos dispõe que “Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será ministrada a seus filhos” (art. 26, item 3). Assim, os pais têm liberdade na decisão pelo tipo de educação que querem dar a seus filhos. O Estado, por sua vez, não possui legitimidade para impor qualquer sistema de educação, senão que deve garantir que haja a educação, como Direito Humano. Daí existir a educação pública, dado que boa parte das famílias não possuem disponibilidade ou intenção de prestar essa educação diretamente. A dizer de outro modo, o ensino público é um serviço prestado pelo Estado, não uma obrigação da família, da mesma forma que o transporte público não impede a utilização de veículos particulares.

Desse modo, a educação domiciliar é corolária do regramento dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, ratificados pelo Brasil e, portanto, de observância obrigatória, os quais possuem status supralegal, conforme entendimento consolidado do Supremo Tribunal Federal.

Por fim, sendo uma questão, como visto, de Direitos Fundamentais, segue-se a sua eficácia imediata, não dependendo de regulação estatal para o seu exercício.        

Conclusão

O Ensino Domiciliar não pode ser confundido com o crime de abandono intelectual, tanto sob a perspectiva dos próprios princípios que regem a lei penal, quanto dos axiomas que regem a temática de Direitos Humanos internacionalmente. Sendo um direito fundamental, não pode seu exercício ser condicionado à regulamentação estatal, vez que relacionado ao próprio núcleo da dignidade humana. Sem embargo, a previsão legislativa expressa dessa modalidade de ensino mostra-se um tema urgente, a fim de evitar a insegurança jurídica enfrentada pelas famílias que optam por essa modalidade educacional.

[1] RAY, Brian. A Review of research on Homeschooling and what might educators learn?. Pro-Posições,  Campinas,  v. 28, n. 2, p. 85-103,  2017 .

[2] SNYDER, M. An evaluative study of the academic achievement of homeschooled students versus traditionally schooled students attending a Catholic university. Journal of Catholic Education, 16, 288-308, 2013.

[3] FEITOZA, Fernanda Bezerra Martins. O direito dos pais na educação moral e religiosa dos filhos: desafios à concretização do artigo 12.4 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. In: SANTANA, Uziel; MORENO, Jonas (Org.). Em defesa da liberdade de religião ou crença: estudos desenvolvidos em homenagem aos 500 anos da Reforma Protestante. Brasília: ANAJURE Publicações, 2018, p. 99-100.

Por Dr. Lucas Oliveira Vianna e Dra. Gabriela Rocha Moura - Membros da equipe do Programa de Apoio à Educação Domiciliar (PAED) – ANAJURE.

A ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE JURISTAS EVANGÉLICOS - ANAJURE é uma entidade brasileira composta por operadores do direito, integrantes do Poder Judiciário, do Ministério Público, da Defensoria Pública, da OAB, das Procuradorias Federais e Estaduais, assim como Professores e estudantes de todo o país, estando presente em 25 Estados da República Federativa Brasileira, e tem como lema a “Defesa das Liberdades Civis Fundamentais”, em especial, a Liberdade Religiosa, de Expressão e a Dignidade da Pessoa Humana. A ANAJURE também é filiada a instituições internacionais que trabalham em defesa das liberdades civis fundamentais em todo o mundo, como a Federação Interamericana de Juristas Cristãos (FIAJC) e a Religious Liberty Partnership (RLP).

* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.

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