O teísmo aberto e eu

A boa teologia não busca substituir um fundamentalismo por outro. O anelo de entender o divino não se prende ao racional. Exegese por mais apurada não chega à verdade absoluta. A sutil percepção poética das entrelinhas revela mais do que qualquer análise sintática do texto. Quanto mais aberto ao imponderável, menos intolerante na defesa do dogma

Fonte: guiame.com.brAtualizado: terça-feira, 19 de agosto de 2014 às 11:49
Ricardo Gondim
Ricardo Gondim

Ricardo GondimNego ter mergulhado de cabeça na teologia do teísmo aberto. Ressalvo: encontrei pontos de contato entre os proponentes dessa teologia. Me interesso por qualquer reflexão que afirme a liberdade humana e o amor de Deus. Estou empenhado em assumir crescente responsabilidade diante do mandado de cooperar com Deus na construção da história.

Entretanto, quanto mais pesquisei sobre teísmo aberto, mais me convenci de que seus teóricos trabalham com as mesmas ferramentas do fundamentalismo. Não hesito em afirmar que o teísmo aberto é o inverso do calvinismo – os dois, faces de uma mesma moeda.

1. Contrário ao teísmo aberto, me afasto da interpretação literal da Bíblia. Não busco no texto, uma verdade objetivamente histórica. Reduzir a narrativa à sua factualidade concreta, perde o sentido mais profundo e rico. A lógica literalista do fundamentalismo não me atrai. Percebo no teísmo aberto a mesma tendência de procurar textos que corroborem com a teologia. O processo de selecionar e grudar versículo às afirmações previamente construídas é típico da teologia sistemática fundamentalista. Se, ao reagir, validam-se as mesmas ferramentas com os mesmos artifícios, o debate não chega a lugar nenhum – vira bate-boca.

2. Contrário ao teísmo aberto, não construo minha percepção sobre futuro, história e liberdade humana com a pretensão de chegar à verdade última. Não gosto de sair à cata de versículos que confirmem o que suspeito ser um absoluto sobre o mistério de Deus. A guerra de provar que certos e determinados textos são metáforas e outros não ou que algumas afirmações sobre Deus são antropormofismos e outras descrições exatas sobre seu ser, não me provoca em nada. Opto claramente pela concepção talmúdica: O Talmud enfatiza repetidamente que as expressões antropomórficas de Deus da Bíblia são apenas metáforas, mas nunca indaga dos critérios para delimitar as enunciações metafóricas das literais. ( A filosofia do judaísmo – Julius Guttman, Ed. Perspectiva, pg. 62). Figuras de linguagem não são mais frágeis que afirmações categóricas. Toda linguagem que tente descrever o imarcescível tem que se valer de metáfora.

3. Não desacredito das afirmações categóricas da teologia sobre a onisciência divina. Não me é complicado ou esquisito dizer que Deus sabe tudo. Ouso apenas qualificar esse tudo da onisciência. Se Deus criou homens e mulheres com liberdade, inclusive de negá-lo e desobedecê-lo, o decorrer da história está desatrelado da relação de causa e efeito. Não existe a possibilidade de Deus tudo controlar, tudo gerenciar, tudo conduzir e, ao mesmo tempo, as pessoas serem livres.

O Deus creator convocou os seres humanos a se tornarem homo faber. Devido ao desígnio criador, Deus concedeu a mulheres e homens a capacidade de alterar o curso da história. O Novo Testamento afirma categoricamente: Deus é amor. Deus não é um poder que ama, ele é o amor onipotente. Sendo amor, ele não poderia criar homens e mulheres à sua imagem e semelhança sem a capacidade de serem livres.

Abandonei a categoria teológica da Providência como o calvinismo a elaborou. Faz mais jus ao ensino de Jesus a compreensão relacional de Deus que chama homens e mulheres de filhos. Ele deseja ser tratado por aba, papai; e Deus os convoca a se tornarem seus parceiros na arquitetura da história.

4. Caminho bem mais próximo dos teólogos latino-americanos católicos: Leonardo Boff, Frei Betto, Jung Mo Sung, Gustavo Gutierrez. Minha espiritualidade me coloca na sintonia de Rubem Alves com sua teopoesia. Não tenho muito a ver com pensadores dos Estados Unidos devido ao meu chão de pobreza e injustiça. O teísmo aberto me parece buscar responder as inquietações diletantes da ortodoxia evangelical.

Sobre a liberdade humana, concordo com o uruguaio Juan Luis Segundo, morto em 1996. No ensaio Graça e Liberdade, Segundo resume o pensamento de Paulo. (“Dialogando com Juan Luis Segundo”, Afonso Maria Ligorio, org. – Paulinas, p.243) .

a) O valor da liberdade não reside em pôr o ser humano à prova, mas sim numa semelhança com a liberdade de Deus e sua função criadora. Isso significa a “filiação” como semelhança e destino: ser “herdeiro” do universo e não tê-lo somente como campo de prova.

b) O valor final da liberdade supõe uma criação desejada expressamente incompleta por Deus, para colocá-la assim nas mãos do ser humano. A tal ponto que, se este não a empunha, o universo inteiro deixa de ter valor aos olhos de Deus e cai na mais completa inutilidade.

A diferença entre a criação com a qual o ser humano colabora com o plano de Deus e aquela do próprio Deus consiste em que este cria do nada, enquanto o ser humano deve “criar” dispondo de elementos e mecanismos já existentes e dotados de uma certa lei instrumental própria (“a lei dos membros”).

c) Significa que Deus cessa de intervir na criação para fazer decisiva, nela, a liberdade do ser humano. E isso a tal ponto que, se este não conseguisse imprimir sua marca livre no universo, Deus mesmo fracassaria em seu plano criador e naquele de fazer todos os seres humanos “irmãos” de seu Filho e herdeiro do mundo, Jesus Cristo.

d) O ser humano é criador quando, à semelhança de Deus, participando da vida divina, ama e cria condições favoráveis para o amor. Essa é sua possível construção e sua intenção original na condição humana que conhecemos.

A liberdade não consiste em poder escolher outra coisa, mas antes em realizar essa intenção, em levá-la a cabo e instalá-la, como construção, na realidade. O egoísmo não é um objeto possível da liberdade, mas sim o resultado de abandonar a liberdade pela facilidade.

e) A liberdade, com toda sua seriedade decisiva, encontra-se e age, assim, entre dois pólos. Não no sentido de que escolha um ou outro como objeto direto de suas preferências, e sim no sentido de que está estendida entre duas direções opostas.

Por um lado, como filho de Deus e criador secundário do universo, o ser humano tende para Deus na medida em que ama e constrói, no que seria um mundo incompleto e doloroso, um mundo fraterno, solidário e com a responsabilidade de desterrar a dor e a desumanidade da vida de todos os irmãos.

Por outro lado, está o egoísmo, não como objeto escolhido por si mesmo, mas na medida em que a força “que habita” em todos os seus instrumentos o leva a desligar-se da tarefa de construir, cedendo aos mecanismos que deveria dominar e fazer servir ao amor.

f) A nova terra do ser humano e o novo céu de Deus são feitos do que ficou ou ficará libertado nos projetos históricos e realistas dos seres humanos em benefícios do amor – graça e vida de Deus em todos -, apesar de a realidade visível colocar sempre cada ser humano diante de problemas que parecem ser tão grandes quanto os anteriores.

A visível corrupção de nossos projetos no presente, por mais dolorosa que seja, é a garantia do que há de maravilhoso e positivamente decisivo na liberdade de todas as gerações que virão. Ainda que a acumulação do que foi construído somente apareça na “manifestação da liberdade dos filhos de Deus” que virá depois da culminação da história, ela já é suficiente para fazer com que qualquer ser humano possa dizer: valeu a pena ser livre. A maturidade filial desterra, assim, pela raiz totalmente, o medo da liberdade.

A boa teologia não busca substituir um fundamentalismo por outro. O anelo de entender o divino não se prende ao racional. Exegese por mais apurada não chega à verdade absoluta. A sutil percepção poética das entrelinhas revela mais do que qualquer análise sintática do texto. Quanto mais aberto ao imponderável, menos intolerante na defesa do dogma.

Creio na sublime tarefa de construir um futuro que ainda não está pronto. Estou empenhado em ensinar que a responsabilidade de tornar o amor viável é humana não angelical. Não aceito determinismo de qualquer espécie. As interferências sobrenaturais, os atalhos mágicos, parecem confortáveis, eles, porém roubam homens e mulheres de se tornarem protagonistas da história.

Minha esperança me diz que Deus não vive em algum canto remoto do universo, ele está presente no arregaçar das mangas. O espírito de Cristo pode ser percebido no abraço afetuoso, no protesto dos pacificadores e na luta contra a pobreza. Podemos identificá-Lo nos olhos das crianças famintas.

Soli Deo Gloria


- Ricardo Gondim

Este conteúdo foi útil para você?

Sua avaliação é importante para entregarmos a melhor notícia

Siga-nos

Mais do Guiame

O Guiame utiliza cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência acordo com a nossa Politica de privacidade e, ao continuar navegando você concorda com essas condições