O verdadeiro eu que está ficando em casa na quarentena

Muitas vezes preferimos viver mais com nossas fantasias, do que no mundo real, e esse pode ser um dos principais motivos de evitarmos a intimidade.

Fonte: Guiame, Clarice EbertAtualizado: segunda-feira, 6 de abril de 2020 às 15:46
(Foto: Ryoji Iwata/Unsplash)
(Foto: Ryoji Iwata/Unsplash)

Ficar em casa pode ser uma bênção! Especialmente quando vivemos estressados, acelerados e corremos neuróticos atendendo a infindáveis demandas. Muitas vezes trabalhamos tanto que surge um clamor, como já cantou Silvio Brito: “Pare o mundo que eu quero descer”. O clamor para que se pare o mundo, se materializa no desejo de interromper a correria para ficar em nossa casa. Ficar por lá e relaxar, descansar e passar um tempo com as pessoas que amamos, vira um anseio para os acelerados e compulsivos trabalhadores. No entanto, ficar em casa pode também ser uma tortura. Mas, porque seria uma tortura se comumente discursamos que nossa casa é o “lar doce lar”, que é o nosso abrigo e porto seguro e onde está o bem mais precioso, que é a nossa família?

Os valores que discursam sobre família, lar, abrigo e porto seguro, associados à nossa casa, estão corretos. No entanto, não é algo que se compra, nem se adquire como um presente, uma herança, nem por imposição de mãos. Para que esses valores sejam efetivados como uma realidade, precisam ser construídos na convivência pelas pessoas da família.

Nesse período de quarentena, por conta do combate ao novo coronavírus, a família é convocada a aderir ao isolamento social e a conviver em confinamento domiciliar. Antes, os desconfortos conjugais e familiares podiam ser distraídos em saídas de casa para o trabalho, produções, consumos, compras, diversões, lazeres, viagens, cultos e passeios. Agora, em quarentena, no confinamento domiciliar, os desconfortos parecem acentuar exponencialmente. Isso acontece porque boa parte dos desconfortos familiares tem a ver com inabilidades relacionais.

Nesse quesito é preciso cada um aproveitar a quarentena e olhar no espelho de vez em quando. Sim, pode ser o espelho para ver o cabelo, mas aqui o destaque vai para outro espelho, o espelho da própria alma e também o espelho do feedback do cônjuge e da família. Olhar e perceber-se nesses espelhos nem sempre é fácil. É por causa dessa dificuldade que usualmente buscamos por distrações, muitas vezes, motivadas pelo próprio narcisismo, hedonismo e individualismo. No entanto, pelo fato da permanência em casa, no período da quarentena, reduzir as possibilidades de distrações que usualmente temos fora de casa, a proximidade relacional com o cônjuge e a família poderá escancarar os aspectos que deveriam ter sido mudados já faz tempo.

Fora de casa, podemos assumir posturas teatralizadas de quem somos. Mas, quando voltamos para casa e ali ficamos, no convívio com a família, com o cônjuge e os filhos, ou os pais, a parcialidade do nosso eu, apresentada nos encontros esporádicos fora de casa, vai-se ampliando na apresentação de um eu mais verdadeiro, menos fantasioso, menos gentil e menos simpático.

Matew Kelly refere em seu livro “Os sete níveis da intimidade” (1) que a apreciação de pessoas em convívios esporádicos, pode nos levar à imagens mitificadas de nós mesmos, nas quais passamos a acreditar. A intimidade com a nossa família, especialmente com o cônjuge, nos resgata desse mundo de faz-de-conta, da imagem mitificada, criada em encontros e apreciações eventuais.

Kelly enfatiza que a intimidade ajuda a nos manter honestos. O outro íntimo é para nós um espelho necessário para que nos vejamos e nos conheçamos. Isolados e sozinhos ficamos sem referência, sujeitos a todo tipo de fantasia sobre nós mesmos. A intimidade nos mantém presos à realidade, arrancando-nos de nossos mundos imaginários e não permitindo que nos enganemos a respeito de nós mesmos.

No entanto, muitas vezes preferimos viver mais com nossas fantasias, do que no mundo real, e esse pode ser um dos principais motivos de evitarmos a intimidade. Deparar-se com o eu verdadeiro, espelhado no feedback de quem consideramos íntimos, pode ser bem mais trabalhoso do que nos relacionarmos superficialmente com pessoas que bajulam o nosso eu mitificado. É bem mais fácil teatralizar fora de casa, seduzir corações na apresentação de um eu parcial, do que conviver intimamente com o cônjuge, com os filhos e com os pais.

Na intimidade é preciso estar disposto a tirar as máscaras, baixar as defesas, deixar de lado as arrogâncias, os narcisismos, os fingimentos e revelar a nossa verdade nos encontrando corajosamente com o nosso eu verdadeiro. Esse eu, que tantas vezes economiza sorrisos, abraços, gentilezas para as pessoas de sua casa, e que nem sempre filtra seus humores na convivência familiar, se mostra em casa sem as máscaras de suas performances sociais.

Diante desse quadro, o eu que está ficando em casa no período de quarentena, ao olhar-se no espelho dos feedbacks dos membros da família precisa se posicionar. Por um lado, pode se posicionar embrutecendo, enrijecendo, julgando, brigando, negando e projetando a culpa no cônjuge, filhos ou pais. Com essa postura dificilmente a convivência familiar é facilitada, podendo gerar conflitos ainda maiores. Mas, não precisa ser assim, pois por outro lado, pode se posicionar reconhecendo que algo precisa mudar, de forma que as posturas gentis e assertivas sejam autênticas expressões de sua interioridade, e não meras máscaras utilizadas para performancear condutas fora de casa no convívio com outras pessoas. Essa postura poderá contribuir para uma interação familiar mais positiva.

Quando nos posicionamos abertos, dispostos a crescer e a evoluir, facilitamos a intimidade e a convivência. Paramos de insistir na manutenção da imagem mítica criada em encontros esporádicos e aceitamos o desafio de modificar os aspectos que clamam por mudanças. Sim, as mudanças do verdadeiro eu que está ficando em casa na quarentena.

Nesse período de quarentena podemos definir se o convívio com o cônjuge e com a família será uma bênção ou uma tortura. Será uma tortura se as pessoas da casa se posicionarem individualistas, arrogantes e com posturas monárquicas.  Mas, será uma bênção quando houver gentileza, parceria, cooperação e solidariedade.

Assim, como quando olhamos no espelho, e este revela que o nosso cabelo precisa de água, pente ou um corte, talvez o espelho da nossa alma e o feedback das pessoas que amamos, esteja revelando que precisamos modificar algo interiormente e em nossas posturas. Se aproveitarmos bem as lições desse tempo de relacionamento estreito, no confinamento em casa com as pessoas da nossa família, aumentaremos as possibilidades de crescimento e amadurecimento pessoal, conjugal e familiar. Do contrário poderá ter sido apenas um tempo de tortura, que, no entanto, poderá resultar em rupturas familiares e conjugais após o período da quarentena.

O verdadeiro eu, que está ficando em casa na quarentena, está sendo desafiado a se melhorar como pessoa em suas posturas conjugais, parentais e familiares. A chave para a evolução é perceber-se e abrir-se ao processo de mudança e crescimento. Que possamos aproveitar bem esse tempo que estamos em casa.  

(1) Kelly, Matthew. Os Sete Níveis da Intimidade: a arte de amar e a alegria de ser amado. Rio de Janeiro: Sextante, 2007.

Por Clarice Ebert, Psicóloga (CRP0814038), Terapeuta Familiar, Mestre em Teologia, Professora, Palestrante, Escritora. Sócia do Instituto Phileo de Psicologia, onde atua como profissional da psicologia em atendimentos presenciais e online (individual, de casal e de família). Coordenadora e palestrante, em parceria com seu marido, do Ministério Vida Melhor (um ministério de cursos e palestras). Membro e docente de EIRENE do Brasil.

* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.

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