Liderança sem Compaixão: Davi e Urias - II Samuel 11-12

Liderança sem Compaixão: Davi e Urias - II Samuel 11-12

Fonte: Atualizado: sábado, 29 de março de 2014 às 03:29

Palavra Inicial

Uma máxima da gestão moderna diz que: estar no lugar certo, na hora certa, com a pessoa certa, fazendo a coisa certa é uma bênção. Estar no lugar errado, na hora errada, com a pessoa errada, fazendo a coisa errada é um desastre. E isso acontece todo dia. Comigo, com você, com Davi. Com Davi, o rei de Israel. Líder inquestionável. Amado pelo povo. Seu nome já o diz: Davi = "o bem amado".

Dos seus feitos heróicos nos falam os dois livros de Samuel. O primeiro das Crônicas também. De forma diferente, mas fala de Davi. Na verdade, I Crônicas 20.1-3 omite um episódio importante ocorrido com o rei Davi. O episódio de Urias, o heteu. O relato aparece, contudo, em II Samuel 11 e 12.

Davi no lugar errado

Como rei, líder da nação, Davi deveria sair para fazer guerra. Assim era o costume, diz o início da narrativa (11.1). O lugar certo em que ele deveria estar era Rabá. Para lá fora seu exército. Porém, Davi permanece em Jerusalém. Em seu palácio real. Em segurança e no conforto.

Davi na hora errada

Numa tarde preguiçosa o rei levanta-se do seu leito. Passeia despreocupado pelo terraço do palácio. Não parece se ocupar com os assuntos do reino. Nem com o conflito em andamento em Rabá. Absorto na paisagem, o rei avista uma bela mulher. Da arcada de sua varanda vislumbra uma mulher em seu momento de banho. Formosa esta mulher, conclui os olhos do monarca.

Davi com a pessoa errada

Ele quer saber de quem é aquela silhueta que encanta seus olhos. Quem é aquela mulher de beleza ímpar que lhe desperta os desejos. É Batsheba, informam seus súditos, mulher de Urias, o heteu. Urias, soldado valente que está no campo de batalha a serviço do rei. O rei Davi que deveria estar junto aos seus soldados escolhe outra companhia. Ele ordena aos mensageiros: Tragam-na aos meus aposentos.

Davi fazendo a coisa errada

Os passos para isso já foram dados. Agora o monarca "deita" com a mulher de Urias. Mulher em período fértil. Davi, o líder de Israel, ao invés de gastar sua força fazendo batalha, ao invés de investir seu suor na guerra, prefere exaurir-se nos braços da mulher de Urias, seu bravo e fiel guerreiro.

Davi no lugar errado, na hora errada, com a pessoa errada, fazendo a coisa errada. Não em Rabá, mas nos seus aposentos. Não na vigília da noite, mas numa tarde preguiçosa. Não com seus soldados, mas com a mulher de um deles. Não fazendo guerra, mas deleitando-se no prazer.

O Problema

Está consumado. Batsheba retorna a sua casa. Davi continua no palácio. E o inesperado acontece. Estou grávida, diz Batsheba. Em pouco tempo a notícia de sua gravidez ressoa nos corredores da casa do rei. A novidade cai como uma bomba nos ouvidos do rei. Provoca um estampido surdo como num campo de batalha.

Não estava no programa engravidar a mulher. Não era esse o resultado esperado. Isso definitivamente não estava nos planos do rei Davi. Como dizemos: uma gravidez indesejada.

Davi, agora, irá travar uma batalha bem mais difícil. Uma luta inglória. Uma guerra contra si próprio. Sem saber que a batalha já está perdida.

Para fazer frente à delicadíssima situação, Davi vai utilizar todos os seus talentos de líder. Davi vai mobilizar todas as suas estratégias. Davi vai usar todo o seu prestígio e ardis para solucionar o problema.

Planejamento Estratégico de Davi

Então o rei de Israel põe em movimento seu planejamento estratégico na gestão do problema. Primeira etapa: mandar trazer Urias para uma entrevista (11.6). Dissimulando suas verdadeiras intenções, Davi pergunta a Urias sobre o desenrolar da batalha em Rabá. Fato estranho esse de chamar um soldado para inquiri-lo sobre a guerra. Melhor seria mandar vir Joabe, o comandante. Mas não se questiona a decisão de um líder do quilate de Davi.

Após as perguntas formais, Davi diz a Urias para ir para sua casa. A porta do palácio mal se fecha à saída de Urias e o rei envia um presente ao fiel soldado. Urias não imagina o propósito de tais lisonjas. E o monarca tem por certo que tudo acabará bem, pois sua estratégia é infalível. Caso resolvido. Urias irá para sua casa, fará amor com sua mulher e todos irão pensar que Batsheba concebeu de seu homem. Uma visita inesperada, por certo. Estratégia simples e eficiente calcula o rei.

Só tem um senão: Davi não contava com a atitude de Urias. O bravo guerreiro não vai para casa. Pelo contrário, permanece na porta da casa real, "deitado" junto aos servos do seu senhor.

Primeira Adequação no Planejamento Estratégico

Um probleminha a mais para o rei resolver. Não estava no script isso que Urias fez. Mas afinal, o que é "um probleminha" para um estadista da envergadura de Davi, não é mesmo? Vamos resolver isso imediatamente. Chamem Urias. Por que cargas d’água você não foi para sua casa? Questiona Davi. O rei imaginara que isso deveria ser o desejo natural de qualquer guerreiro. Voltar para casa, para a segurança do lar, para os braços da mulher amada. E amar e descansar e revigorar as forças. Por que, Urias, você não desceu para sua casa? (11.10) indaga Davi.

A resposta de Urias é como uma crítica sutil à atitude do rei: "A arca, Israel e Judá ficam em tendas; Joabe meu senhor e os servos de meu senhor estão acampados ao ar livre; e hei de eu entrar na minha casa, para comer e beber e para deitar com minha mulher? Tão certo como tu vives e como vive tua alma, não farei tal coisa" (11.11).

A firmeza do fiel soldado é inabalável. Sua convicção do dever é inquebrantável. Sua disposição em lutar é inviolável. Sua lealdade para com seus pares, com seus superiores, com seu povo, com seu rei, com seu Deus (arca) é inquestionável.

A resposta de Urias (seu nome significa "Luz/Chama de Javé") soa como crítica ao rei Davi, pois é como se o soldado dissesse: Tu, ó rei, é quem devias agir deste modo.

Diante de um posicionamento tão resoluto de Urias é preciso mudar a estratégia para solucionar o problema que ainda persiste.

Segunda Adequação no Planejamento Estratégico

Que tal uma festa?! Fica aqui no palácio ainda hoje, Urias (11.12). Davi oferece ao guerreiro uma festa. Comida, bebida e diversão. Pão e circo. O rei embriaga Urias. O monarca sabe que o excesso de bebida tira um homem da sua razão. Sabe o rei que a embriaguês rompe com os limites sociais. Pela tarde, o leal soldado, trôpego por causa da bebida deita, finalmente, na sua cama. Contudo, não com a sua mulher, como planejara Davi, mas com os servos do seu senhor.

A determinação de Urias frustra a estratégia de Davi, seu senhor. Em outras circunstâncias o rei de Israel, provavelmente, elogiaria Urias por essa atitude. O condecoraria por lealdade. Ofereceria uma festa, talvez até uma promoção, uma patente superior.

Porém, na atual conjuntura a atitude de Urias agrava o problema. Nada parece persuadi-lo de sua decisão de não ir para casa. Nada e ninguém conseguirão demovê-lo do seu foco.

A crise está instalada no palácio real. É preciso debelar essa situação. E Urias não está colaborando para a solução do problema. Sua lealdade é vista como contumácia. Sua firmeza como teimosia. Suas melhores qualidades transformaram-se em empecilho para a gestão dos problemas pessoais do rei Davi.

Um problema radical exige, também, uma solução radical. E a solução radical requer que o problema seja eliminado definitivamente. Davi perde o foco. O problema passa a ser, agora, Urias, o heteu.

Terceira Adequação no Planejamento Estratégico

O rei tem que maximizar seu potencial de líder. Assim, põe o aparato militar do reino a seu serviço pessoal. O exército de Israel tem uma guerra para lutar. Os soldados estão empenhados em conquistar uma vitória contra os filhos de Amon. E seu líder supremo preocupado em resolver o seu próprio problema particular.

Davi sentencia Urias à morte. E pelas leais mãos do próprio Urias (11.14) Davi envia sua sentença de morte ao comando militar em Rabá. Joabe, coloque Urias no front. Exponha Urias ao alcance das armas inimigas. Deixe-o só para que seja ferido e morra.

Joabe sabe que este estratagema de combate não é bom, nem seguro. Joabe sabe que isso resultará em baixas na corporação. Todavia, recebeu ordens do rei. Como questionar seu senhor, um exímio estrategista militar? Os sucessos de Davi o comprovam. (11.21)

Joabe faz parte de uma estirpe de homens leais. Como Urias, Joabe mantém obediência incondicional ao rei. Ele executa o mandato do monarca sem questionar. E Urias jaz morto. Com ele alguns valentes de Davi.

Notícias do front chegam ao palácio em Jerusalém. Ao arauto do exército que traz as novas é recomendada cautela. Cautela ao informar o rei sobre a morte dos soldados. Uma ação bélica desastrosa. Joabe sabe disso e instrui o mensageiro a enfatizar que Urias, o heteu, também foi morto. Como se o rei Davi já não o soubesse.

Ao enviar o arauto de volta a Joabe, Davi, com cinismo, diz: "Não pareça isso mal aos teus olhos; pois a espada devora assim este como aquele" (11.25). Foi uma fatalidade Joabe. É a vida. O que se há de fazer?!

Planejamento Estratégico Enganoso

Davi parece aliviado. Há um tom de alívio em suas palavras de Davi. Alívio por ter obtido sucesso no seu plano para solucionar um problema de "Estado". Não foi bem como ele havia planejado. A solução do problema exigiu algumas correções de rota. Mas no final tudo acabou bem, afinal deu tudo certo. Urias morto. Batsheba viúva. E o caminho livre para Davi desposá-la.

Um grande líder com uma grande solução! Caso encerrado.

Ledo engano. Pois "... isto que Davi fizera, foi mal aos olhos do Senhor." (11.27).

Em todo o percurso da gestão do problema, criado pelo próprio Davi, ele não teve em conta o seu Deus.

Planejamento Estratégico Desmascarado

E vem Natan a Davi (12.1). Natan, o profeta. A boca do Senhor. Sutilmente Natan conta uma história a Davi. Uma história de crueldade e abuso de poder. Um homem poderoso e rico defrauda um homem fraco e pobre, tomando-lhe seu único e mais precioso bem: uma ovelhinha (12.2-4). Natan sabiamente comove seu rei ao relatar que a cordeirinha não é um animal qualquer, "... senão uma cordeirinha que comprara (o homem pobre) e criara, e que em sua casa crescera, junto com seus filhos; comia do seu bocado e do seu copo bebia; dormia nos seus braços e a tinha como filha. (12.3). O profeta quer despertar o senso de justiça de Davi.

Uma história de causar indignação. E causa, em Davi, um ataque de furor. Ira tão intensa que o rei decreta a morte do homem rico. Motivo? "... porque não se compadeceu do homem pobre." (12.6). Palavras de um rei sábio e justo, que defende o direito dos súditos do seu reino, que se compadece e julga a causa dos seus servos. Então, no auge de sua indignação Davi escuta: "Este homem sem compaixão é você!

Eis aqui o ponto crucial da narrativa. Davi mostra compaixão pelo homem indefeso por causa da cordeirinha. Todavia, foi incapaz de qualquer compaixão por Urias, seu leal soldado.

A palavra de Natan é uma denúncia. Uma denúncia que se fundamenta em uma pergunta básica: "Por que, pois, desprezaste a palavra do Senhor, fazendo o que era mal perante ele? (12.9a). A acusação é clara: Feriste Urias, o heteu, o mataste com a espada dos filhos de Amom. E ainda por cima tomaste a mulher dele. (12.9b).

Davi havia se lembrado de dizer a Joabe: "Não pareça isto mal aos teus olhos" (11.25), mas se esquecera de levar em conta os "olhos do Senhor". Aquele que vê o íntimo. Aquele que sabe as intenções do coração. Olhos daquele que sonda e conhece os pensamentos.

Depois da denúncia, a sentença: a espada não se apartará de sua casa; o mal sobrevirá à tua casa. De dentro dos teus muros. À tua vista. O que fizeste em oculto, farei perante Israel e o sol. (12.10-12)

Urias (luz do Senhor) revela a liderança sem compaixão do grande rei Davi.

Planejamento Estratégico Desastroso

Desmascarado, Davi sente a "palavra do Senhor" cortar-lhe a própria carne. E confessa: "Pequei contra o Senhor." Ao que Natan replica proclamando o perdão de Adonai: "Também o Senhor te perdoou o pecado." (12.13)

Mas, o reconhecimento da falta por Davi e o perdão do Senhor não evitam as trágicas conseqüências dos atos de Davi. O desfecho é conhecido. O rei não precisará esperar para sentir na própria pele os resultados de sua ação desastrosa.

Meses de sofrimento. Da decisão de ficar em Jerusalém, o intercurso com Batsheba à morte da criança nascida dessa relação decorreram meses de sofrimento. Meses a fio durante os quais Davi teve que dissimular, enganar, trapacear, matar.

Retomar o caminho

Pergunta e resposta óbvias: Como poderia Davi ter evitado tanto sofrimento para todos? Tomando a decisão certa: ter ido a Rabá com seu exército.

Importa ao rei, agora, retomar a sua carreira no momento em que ela foi interrompida. Em 12.26-31 Davi retoma o lugar certo, a hora certa, a pessoa certa e faz a coisa certa. Reassume seu papel de líder. Ele vai para Rabá, está presente na hora da batalha, fica junto aos seus soldados e participa da luta contra os filhos de Amom.

Palavra Final

Não resta dúvida de que a gestão de problemas exige planejamento. Exige soluções estratégicas. Entretanto, não sem compaixão, pois da compaixão depende o sucesso na gestão de problemas. E a compaixão não é um elemento no planejamento estratégico, é, isto sim, seu pressuposto básico, seu fundamento.

Portanto, qualquer liderança que elabore um planejamento estratégico que ignore valores fundamentais como a compaixão, está fadada ao fracasso e muito, mais muito próxima mesmo de agir injustamente.

Este conteúdo foi útil para você?

Sua avaliação é importante para entregarmos a melhor notícia

Siga-nos

Mais do Guiame

O Guiame utiliza cookies e outras tecnologias semelhantes para melhorar a sua experiência acordo com a nossa Politica de privacidade e, ao continuar navegando você concorda com essas condições