O que a criança pode decidir e o que é preciso decidir por ela

Decidir ou escolher gera responsabilidade, e é importantíssimo que ensinemos isso às crianças. Mas devemos adequar suas decisões às suas capacidades

Fonte: www.tacodemulher.com.brAtualizado: quinta-feira, 16 de outubro de 2014 às 14:52
criança_menina
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criança_meninaConforme proposto na minha coluna anterior, quero fazer de tudo pra mostrar com exemplos práticos o que eu explano em teoria – porque não vejo muita gente fazendo isso, e, ao ler muitos textos aqui da internet, fico imaginando que os autores estão querendo dizer praticamente, em como aplicar suas filosofias, e quase nunca chego a uma conclusão aplicável.

Quando me distancio das minhas crenças e me abro pra ler um texto que prega filosofias opostas à minha, quase consigo comprar aquelas ideias, de verdade. Muitos textos são bem escritos e considero muitos deles razoáveis em seus princípios, mas quando penso na aplicação dessas ideias, (quando isso é possível, porque algumas filosofias têm suas aplicações praticamente criptografadas) considero no mínimo inviáveis, se quisermos um dia a dia fluido e tranquilo. De acordo com minha experiência, correntes que pregam o “apego” (e, juro, acho essa denominação desonesta, porque ninguém está pregando, em nenhuma corrente, por mais despojada que seja, o “desapego”), não se sustentam porque o resultado prático delas cria um terreno onde a criança está sempre precisando impor sua vontade pra se sentir inserida. A vontade satisfeita, a “opinião levada em conta” demasiadamente os torna sim, sedentos de poder. Decisão infantil virou moeda familiar, e, muitos pais se tornaram reféns de filhos que só dominam tudo porque não aprenderam a ser de outra maneira. E essas crianças estão eternamente insatisfeitas e tentam decidir tudo, compulsivamente.

Outro dia li um texto que apregoava “criança também é gente”. E começava muito bem, mostrando como muitas pessoas dividem a humanidade entre “crianças” e “gentes”, e o quanto isso é injusto. Eu estava quase comprando a ideia quando percebi que, na verdade, esse texto propunha uma equalização do poder dentro de casa, afinal, se a criança é gente como nós, porque não deixar que ela decida sobre sua vida como decidimos sobre as nossas? A resposta é: porque a criança é gente, sim, mas gente em formação, ainda incapaz de tomar determinadas decisões, que precisam ficar a cargo da experiência de seus pais e cuidadores. E como levamos essa formação vai fazer toda a diferença quando ela for obrigada a decidir sua vida. Simples assim.

Então devemos eximir as crianças de decidirem qualquer coisa? Não, claro que não! Como digo no meu texto anterior, decidir ou escolher gera responsabilidade, e é importantíssimo que ensinemos isso às crianças. Mas devemos adequar suas decisões às suas capacidades. Por exemplo: se você deixar que a criança decida o que vai comer todos os dias, ela certamente sofrerá, em pouco tempo, consequências de um déficit nutricional. Se ela sempre decidir que roupas vai usar, certamente vai se resfriar ou se desidratar por não saber adequar sua roupa ao clima. Se ela se comportar da maneira que quiser em todos os lugares, poderá ser isolada pelas outras crianças, olhada feio pelos adultos, sofrer ou praticar bullying, e até ser agredida. Se seu desejo de que o pai ou mãe não saiam de casa pra trabalhar for atendido, ou se os pais demorarem duas longas horas em explanações sobre a necessidade de sair e se atrasar para o trabalho, a família inteira sofrerá as consequências financeiras desse ato.

Outro dia estava trabalhando com duas meninas com quem eu não tinha muita intimidade. Elas eram extremamente educadas, porém, voluntariosas e acostumadas a ter todas as suas vontades satisfeitas. Ao menor beicinho, os pais, babás ou a empregada da casa corriam para atender suas exigências. Estava frio e uma delas não queria colocar a meia. Chorou, bateu o pé, esperneou, e rapidamente o pai entrou no quarto pra saber o que estava acontecendo. Ao saber da recusa da menina, decretou: “deixe-a sem meia, mesmo, senão ela não para mais de chorar”. Infelizmente não tive saída a não ser aceitar a desautorizada que o pai me deu – afinal, cada pai ou mãe é soberano na decisão de como criar seus filhos, mesmo que essa decisão implique em deixar que as crianças decidam tudo – e, em menos de duas horas, ela estava espirrando. O pai chegou com um xarope e “resolveu” o problema. Essa criança, na prática, foi impedida de ter o cuidado de uma autoridade presente e ao mesmo tempo de sofrer as consequências de sua decisão – ou, mais precisamente, teve essa consequência “remendada”. Acredito que, se é pra deixar que a criança decida alguma coisa, é preciso então que ela tenha a oportunidade de experenciar as consequências dessa decisão, sejam boas ou más. Afinal, é assim que aprendemos: tentativa e erro.

No mesmo dia, a irmã resolveu levar uma cadeirinha de plástico para a sala de jantar. Insisti para que deixasse no quarto, afinal “essa cadeira tem perninhas mas não anda, quando voltarmos ela vai estar aqui te esperando”, mas lá veio o beicinho e, em fila, o pai, a babá e a empregada da casa. Pois a menina levou a malfadada cadeirinha, e quis porque quis comer em pé nela. O resultado? Durante todo o jantar, a babá ficou em pé atrás da menina, para que ela não caísse. Mais uma vez, a oportunidade de ter a proteção de alguém que pode decidir por ela foi negligenciada, e, além dela, a menina também perdeu a oportunidade de receber as consequências de seus atos, como um tombo ou um susto ao se desequilibrar, ou a obrigação de tomar cuidado para não se machucar.

Entendem o paradoxo? Nessas duas situações quiseram dar à criança uma autonomia de adulto, mas não se abriu mão da superproteção, nem por um instante. Isso é o que eu chamo de “sinal trocado”, e que confunde à beça a cabecinha dos nossos guris. Volto à palavra mágica da educação infantil: coerência. Então meu filho é gente pra decidir mas não é gente pra sofrer as consequências de suas decisões? Como assim, papai? Jura, mamãe?

O que eu considero uma atitude saudável diante dessas duas situações seria:

a) Exigir que a menina coloque a meia, e ponto: é possível usar de muito amor, carinho e paciência para impor sua vontade, que é nada menos que fazer a coisa certa. Conversar, explicar que não há negociação nesse sentido, e, se a criança chorar, respeitar sua necessidade de expor sua frustração, mas não deixar que ela decida por você. Pode deixar chorar um pouco, criança chora mesmo, gente. Em pouco tempo ela parará de chorar e obedecerá. Se for preciso usar de uma certa força e colocar as meias mesmo com ela se debatendo, paciência. A cada vez que você impuser sua decisão numa situação como essa, indiscutível, ela estará mais dócil e um passo adiante no entendimento dessa questão simples: quem sabe mais sobre o bem estar da criança é o papai, a mamãe, o adulto responsável, pelo menos por enquanto – ensinar a esperar também é importantíssimo!

b) Impedir que a cadeirinha vá para a sala de jantar: você sabe que o lugar da cadeirinha é no quarto e que é arriscado comer em pé em cima dela com os cotovelos apoiados na mesa. Ela pode tropeçar, bater a cabeça, cair de bumbum, o cotovelo pode escorregar e ela poderá bater a boca na quina da mesa. A mesma coisa vale para o choro que pode se seguir: ter o desejo frustrado é difícil, mesmo, mas todos passamos por isso, é preciso treinarmos a tolerância às frustrações. Deixe a chorar um pouco, e ver com seus próprios olhos que chorar não resolve questão nenhuma, é apenas uma forma de alívio, que não deve ser coibida – nem incentivada, claro.

Devagar e pacientemente, com carinho e bom humor, a criança vai ter, com o tempo, mais vontade de colaborar que de enfrentar e impor suas vontades. E o clima da casa agradecerá.
Amor e gratidão.


- Fabiana Vajman
www.tacodemulher.com.br

 

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