O preço da Páscoa

A Paixão de Cristo perdeu o sentido religioso total de seu significado profundo e verdadeiro.

Fonte: Guiame, Sergio Renato de MelloAtualizado: quarta-feira, 15 de maio de 2024 às 17:18
(Foto: Unsplashj/Cdoncel)
(Foto: Unsplashj/Cdoncel)

Todos os anos, no final de março, a mesma sensação. O que mais chama a atenção na Páscoa é a perda do significado religioso. Todos continuam fazendo o que têm que ser feito, comendo carne, pesquisando o melhor preço dos ovos de chocolate, trabalhando, se entretendo nas redes sociais. Já adianto que não estou afirmando que é proibido comer carne na Páscoa…

É também de se revoltar quando ditaduras reprimem manifestações culturais da Páscoa. Na Nicarágua, o ditador Daniel Ortega encheu as ruas de policiais para impedir as tradicionais procissões de Páscoa. Fiéis que chegavam às igrejas eram fotografados e ameaçados de prisão, num ato claro de intimidação. A Nicarágua de Ortega tem reprimido a Igreja Católica no país, confiscando bens, prendendo e expulsando padres e religiosos, entre outros atos atentatórios a direitos.

Com relação ao esquecimento do valor da Páscoa, seria uma certa aparência de bondade? Querem esquecer que Jesus morreu, quando a sua morte deveria ser até comemorada pelos séculos dos séculos, como ele mesmo disse antes de partir? Não, logicamente que não. Jean Borella explica o fenômeno em seu A crise do simbolismo religioso. A morte deveria continuar sendo jubilada.

A alma intelectiva do homo sapiens exagerado e vaidoso procurou dar explicações racionais sobre as coisas religiosas. Mas, quanto mais explicações racionais vieram mais elas foram perdendo espaço no coração dos pesquisadores e dos praticantes. Não sei quem foi o primeiro já morto espiritualmente que quis dar explicações sobre fenômenos que só são traduzíveis pela fé.

Enfim, um verdadeiro esquecimento provocado pelo exagero da razão (só para situar o leitor que desconhece o sentido de “razão”, ela veio contra a fé). Se for levar para o Supremo Tribunal Federal ele dirá que até os símbolos religiosos, principalmente Jesus Cristo, têm direito ao esquecimento. No que se transformou o mais poderoso tribunal judiciário do país? Lembram daquele filme, Titanic? Chegaram a falar no filme que nem Deus afunda o navio. Algum personagem do filme falou, lembro vagamente. A atual composição moderninha do STF parece aquela banda do Titanic que continua tocando enquanto o navio afunda cada vez mais.

Enfim, o que Jean Borella quer dizer é que estudiosos fora do espírito se perderam ao tentar explicar a razão histórica da religião e seus desmembramentos. Mortos espiritualmente, agora eles arrastam consigo a alma racional, que só noticia o preço do ovo de Páscoa, sobretudo que ele subiu, que o seu estoque está quase acabando e que é para todos correrem aos supermercados enquanto há tempo, além de noticiar o porquê da troca da carne pelo peixe.

Com o passar dos anos, a Páscoa ganhou um incentivo do comércio e um trunfo para comunistas deitarem e rolarem em cima do lucro dos chocolates que ela acabou proporcionando. A Paixão de Cristo perdeu o sentido religioso total de seu significado profundo e verdadeiro. Uma maioria de pessoas não conseguiria explicá-la numa entrevista de rua sem pensar muito antes de responder e, ainda, responderia incompletamente. Falaria “religião”, “Jesus”, “Cristo”, “ressurreição”, sem se aterem à tradição.

O desvio do olhar do verdadeiro significado para os chocolates, o comércio e o lucro foi um descuido. Era preciso que a comemoração fosse mantida, como o é até hoje em forma de tradição e para manter a tradição, que é, como eu mesmo disse ali em cima, necessária, e com um gosto ruim ou doce no paladar para não cair no esquecimento. Claro que o homo sapiens preferiu o doce, já que rejeita qualquer tipo de fracasso ou amargura.

A Páscoa era uma festa israelita que existia sempre em comemoração de algo. Na época bíblica de Êxodo 12, 1-28, ela consistiu no sacrifício de um cordeiro para que Deus livrasse Israel do Egito. Em Josué 5, 10-11, serviu para celebrar a Páscoa por ocasião da entrada dos israelitas em Canaã. Ao tempo da Paixão de Cristo, a Santa Ceia de Jesus com os seus discípulos, ou Eucaristia, que foi a última ceia do Senhor em vida na noite anterior à sua morte, é vista como ceia pascal, desta vez ele sendo o cordeiro de Deus. Os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas não me desmentem.

Com relação ao Natal aconteceu a mesma coisa, os presentes ocupando o espaço de atenção do significado que realmente deve importar. A confraternização e os presentes alegram e ao mesmo tempo fazem esquecer o sentido de parar tudo, que é além de sair da rotina e descansar, preparar o espírito para o temido retorno ao temido dia a dia.

Mas o descuido era até previsível, pois o exagero, o sair dos trilhos, do caminho da verdade, é marca do descuidado homo sapiens, como deixou claro, valendo repisar, Jean Borella.

O importante, como disse, é a tradição viva nem que seja pela lembrança remota de um Cristo salvador, libertador, não esse arremedo de Cristo secularizado e aculturado que os congressistas brasileiros aprovaram a contragosto do próprio Jesus.

O comer carne é também outra coisa a ser levada em conta na época de Páscoa. Se é pecado ou não, não pergunte para Deus, pois ele está ocupado com importâncias espirituais mais urgentes do que estas. Se é para enfraquecer a própria carne vá em frente, objetivo da dieta pascal, coma carne. Do contrário, seja sincero e faça o melhor churrasco da vida. Eis o significado simbólico da carne, que pode ser excluída em dias comuns, menos para dieta, mais para o espírito. E Jesus gosta mais de sinceridade do que de kantismo, doutrinas e apontar dedos para quem faz aquele churrasco em vez de ter assado peixe.

O Uol, naquele jeitão Uol de ser, explicou mais ou menos para os seus leitores, assinantes e pesquisadores de Google: “A quinta-feira é o dia da Última Ceia de Jesus e quando ele lavou os pés dos discípulos. Na sexta-feira, houve a crucificação e no domingo, é a ressurreição…”. O lava-pés praticado nas igrejas, com aerossol (sem tocar as mãos), é um tanto quanto patético até, mas serve para manter a tradição se religiosos ainda vivos derem explicações ao povo sedento por conhecimento que liberta.

Mas, então, qual o referente da Páscoa que foi perdido, digamos, e sem querer dar crédito aos comunistas, pelo uso “capitalista” dos chocolates e ovinhos? O chocolate, além de servir para engordar, serve para comemorar. Serve para deixar memorável a missão salvífica de Jesus, que Jesus veio para salvar a humanidade. E qual o preço do chocolate? Não há uma relação de mercado. E ele é democrático. Todos conseguem pagá-lo. É só querer.

Enquanto o preço do chocolate está encarecendo como diz a internet, o fardo ou jugo de Cristo é tão leve que todos podem carregar sem qualquer problema.

Por que “paixão” de Cristo? Ora, se Cristo pensasse muito jamais deixaria ser crucificado. Então, teve que, amando, deixar-se imolar como um cordeiro pascal.

 

Sergio Renato de Mello é defensor público de Santa Catarina, membro da Igreja Universal do Reino de Deus e autor de obras jurídicas e dos seguintes livros: Fenomenologia de Jornal, O que não está na mídia está no mundo e Voltaram de Siracusa.

* O conteúdo do texto acima é uma colaboração voluntária, de total responsabilidade do autor e não reflete necessariamente a opinião do Portal Guiame.

 

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